Acorde imperfeito<font size=-1>(1)</font >
O Chefe do Estado-Maior do Exército demitiu-se. A demissão de um Chefe militar é sempre um acto que tem de merecer reflexão, porque tal decisão nunca é tomada de ânimo leve.
A sua demissão, pelo que se pode inferir das múltiplas notícias sobre o assunto, resulta de um defeituoso método de relacionamento entre o MDN e o próprio, a que acresce a determinação de caminhos concretos que o próprio deveria seguir face a um subordinado.
Como várias vezes tem sido expresso, a subordinação das Forças Armadas ao poder político, matéria absolutamente pacífica, não é sinónimo de submissão. Há limites. E quando esses limites são ultrapassados o «caldo entorna-se», mesmo que isso não conduza a demissão nenhuma.
Sucessivos governos e sucessivos chefes têm sobre esta matéria muito que se lhes diga. A crescente substituição da frontalidade e do respeito claro pelas regras de relacionamento e competências, por uma geometria variável em função de interesses corporativos, satisfações mediáticas e outras, tem dado um contributo para uma prática de «dois pesos e duas medidas» e de importantes entorses às regras de relacionamento e de resolução dos problemas, com todas as consequências daí resultantes.
A demissão do General CEME surge poucos dias após um show televisivo no programa «Prós e Contras». Tudo fardado a preceito, tudo sintonizado. Como todos lá foram parar é contas de outro rosário. O tema era, imagine-se, as Forças Armadas e o terrorismo. Erro de casting? Não! Foi mesmo assim. Num primeiro olhar ainda houve quem pensasse que ali estava a PSP, a GNR, o SEF, a Polícia Marítima, a Magistratura, mas não. Problemas? Mas quais problemas? E quais os objectivos? Ganhar a aceitação da opinião pública para o crescente envolvimento externo? Somos bons porque estamos no Iraque, no Afeganistão, Mali e outras paragens? Somos bons porque no Afeganistão, como foi dito no programa, estamos às ordens do Comandante Operacional para agir onde e quando for preciso? Se esta for a lógica, quer isto dizer que os que lá não estão (entenda-se, os países que lá não estão) são maus, ou seja, pouco preparados, sem meios, etc.? Não cremos que esta lógica seja racional.
Conforme reiteradamente afirmámos ano após ano, os problemas não estão nos homens e mulheres que prestam serviço nas Forças Armadas, na sua dedicação, empenho, esforço e capacidade, aliás, qualidades que ajudam a superar muitos problemas, dando expressão concreta à muito utilizada expressão do «desenrascanço». O problema tem estado, lá voltamos nós ao início, na ausência de frontalidade dentro das regras, de planeamento credível, de uns olharem os militares como alguém que «come e cala» e outros olharem o poder político como entidades passíveis de serem dribladas.
O General Chefe do Exército demitiu-se. Disse ele em mensagem enviada que «(...) Existem, no entanto, momentos no percurso dos militares em que a defesa dos princípios da ética e da honra, bem como o cumprimento dos deveres militares como os de tutela e de responsabilidade, impõem que se actue perante as circunstâncias». Outros não o fizeram, nem sequer esboçaram, em circunstâncias concretas e em torno de problemas concretos, qualquer registo apreciativo.
Alguém, no quadro das alterações governamentalizantes quanto à forma de escolha das chefias, suscitou um dia a questão de se ter de saber se a lealdade dos chefes é ao poder político, onde fica a sua lealdade para com os homens que comanda. Recordo que a resposta imediata, unânime, na altura foi que «fica no bom-senso, na necessária consensualização». Sendo unânime, significa que o próprio que levantou a questão também esteve de acordo, tendo contudo dito que «isso está a esgotar-se», ao que outro retorquiu «a principal lealdade deverá estar no respeito pela Constituição da República».
1 Parafraseando a expressão de Eugénio de Andrade «Uma palavra é como a nota que procura outras para um acorde perfeito».